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13 de setembro de 2020

ORTEGA Y GASSET: As Idéias dos Náufragos

    Observai os que vos rodeiam e vereis como avançam perdidos em sua vida; vão como sonâmbulos, dentro de sua boa ou má sorte, sem ter a mais leve suspeita do que lhes acontece. Ouvi-los-eis falar em fórmulas taxativas sobre si mesmos e sobre seu contorno, o que indicaria que possuem ideias sobre tudo isso. Porém, se analisais superficialmente essas ideias, notareis que não refletem muito nem pouco a realidade a que parecem referir-se, e se aprofundais na análise achareis que nem sequer pretendem ajustar-se a tal realidade. Pelo contrário: o indivíduo trata com elas de interceptar sua própria visão do real, de sua vida mesma. Porque a vida é inteiramente um caos onde a criatura está perdida. O homem o suspeita; mas aterra-o encontrar-se cara a cara com essa terrível realidade, e procura ocultá-la com um véu fantasmagórico onde tudo está muito claro. Não lhe interessa que suas "ideias" não sejam verdadeiras; emprega-as como trincheiras para defender-se de sua vida, como espantalhos para afugentar a realidade.

    Homem de mente lúcida é aquele que se liberta dessas "ideias" fantasmagóricas e olha de frente a vida, e se convence de que tudo nela é problemático, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade - a saber, que viver é sentir-se perdido -, quem o aceita já começou a encontrar-se, já começou a descobrir sua autêntica realidade, já está no firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo para se agarrar, e esse olhar trágico, peremptório, absolutamente veraz porque se trata de salvar-se, lhe facultará pôr ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas ideias verdadeiras; as ideias dos náufragos. O resto é retórica, postura, íntima farsa. Quem não se sente de verdade perdido perde-se inexoravelmente; quer dizer, não se encontra jamais, não topa nunca com a própria realidade.


Referência: José Ortega y Gasset. A Rebelião das Massas.

26 de agosto de 2020

Hugo de São Vítor: um antídoto contra a modernidade

    Embora ainda não tenha concluído a leitura, inclino-me a pensar que tão-logo poderei recomendar sem receios a obra Didascalicon aos meus amigos e companheiros, bem como aos meus colegas que muito amiúde me pedem indicações de leitura filosóficas. E isto não somente em razão do conteúdo ali exposto, mas também do método com o qual Hugo de São Vítor tão bem expõe-no. Em filosofia, como em toda ciência, o método de exposição é fundamental, pois facilita ou dificulta a apreensão, a qual, em verdade, deve ser sempre que possível facilitada. Em se tratando de filosofia, todo pedantismo é reprovável, pois que prezamos pela clareza, sempre. Sabe-se o malefício que exposições mal feitas trazem às nossas inteligências, confundindo-nas no mais das vezes e obrigando-as a fazer malabarismos excruciantes: exercícios que poderiam ter sido evitados se o método tivesse certa prioridade na exposição. Em Retórica, aprendemos que não basta falar, é preciso saber como falar, e é por esta razão que Aristóteles define a Retórica como a arte de encontrar os meios de persuadir em quaisquer circunstâncias.
    O Didascalicon propõe-se a ensinar ao estudante como estudar, e não espante o leitor tal proposta, pois é mais comum do que se imagine no meio intelectual. Títulos semelhantes a "Como ler livros", "Como fazer isto" ou "Como fazer aquilo" são mais comuns do que se imagina. E, sim, aqui refiro-me à obra do Mortimer Adler. Mas não nos interessa falar dele aqui. Com efeito, também o Padre Sertillanges escreveu um livro boníssimo sobre o modo como devemos conduzir nossa vida, se queremos ter uma vida intelectual efetiva; para efeito de conhecimento, diga-se que o nome do livro é A Vida Intelectual - e recomendo a todos, sem medo. Mais do que isto, acredito que absolutamente todos deveriam ler este livro, independente se querem ou não ser intelectuais, se possuem ou não vocação para a vida de estudos.
    Retornemos ao Didascalicon. Como eu dizia, este livro se propõe a ensinar-nos como estudar, e o faz com maestria sem igual, pois Hugo de São Vítor havia compreendido um traço conspícuo de nossa natureza: só aprendemos o que queremos aprender e, ademais, a causa eficiente do aprendizado está no aluno, no estudante, não no professor. Os teóricos da pedagogia moderna arrogam para si esta descoberta, mas isto não passa de um simulacro dos mais abjetos, diga-se de passagem, pois sabe-se disto ao menos desde Platão. O problema é que, hoje, tendemos a condenar o que quer que seja antigo, sob o pretexto de não ser atual - santa ignorância! A quem possui o mínimo de cultura - e aqui me refiro à cultura de verdade, no sentido originário e forte do termo, e não ao sentido positivista que hoje tornou-se o principal - é evidente que condenar o passado por ser o que é constitui uma bobagem descomunal, mas há quem realmente pense que Platão e Aristóteles estão ultrapassados e que o que é novo é, ipso facto, bom. É o funesto amor pela novidade.
    Por ter compreendido este traço fundamental do ser humano, Hugo de São Vítor conseguiu levar a educação ao apogeu em seu tempo, e não somente por isso, mas pelo afinco com que se dedicou às chamadas sete artes liberais, das quais nem sequer ouvimos falar a não ser em alguns livros mais tradicionais de filosofia. Ele entendia que o domínio destas sete artes facilitava o aprendizado das demais artes - e, de fato, ele tinha razão. Na verdade, esta compreensão, de acordo com ele mesmo em seu livro, jazia muito antes dele, desde ao menos Pitágoras.  E filósofos como Santo Tomás de Aquino, que nada mais são do que a culminação da pedagogia vitorina, demonstram perfeitamente a eficiência do seu método. Conhecemos uma árvore através de seus frutos, e creio que Santo Tomás seja um fruto excelso, o que revela que Hugo de São Vítor tinha algo de admirável em sua maneira de conceber a pedagogia. 
    Ele, ademais, criou aquilo que posteriormente seria chamado de Suma Teológica, que consistia em sintetizar todo o conhecimento teológico que estava disperso num único tratado, e fora precisamente Santo Tomás quem levara à máxima perfeição este novo estilo de se fazer teologia. Mais um fruto da árvore de Hugo.
    Há um outro ponto fundamental, que hoje fora esquecido mas que nos tempos mais remotos era evidente, que consiste em conformar a vida à ciência, quer dizer, em entender que não há cisão entre a vida teorética e a vida prática individual. Na modernidade, porém, tornou-se tendência e, pode-se dizer, norma comum desvincilhar a vida intelectual da vida moral e pessoal; nunca isto havia ocorrido antes na história, e talvez isto seja uma das razões que fizeram com que a filosofia trilhasse por uma direção quase que contrária àquela que antes havia trilhado. De certo modo, a busca pela verdade não cessou totalmente, mas - a meu ver - deixou de ser uma prioridade, sobretudo se levarmos em consideração o fato de que os filósofos modernos reduzem a filosofia ao problema do conhecimento, quer dizer, ao problema de saber se podemos conhecer a verdade e até que ponto podemos conhecê-la. Com efeito, pode-se dizer que a filosofia moderna despendeu suas energias quase que totalmente na revisão de seu instrumento de trabalho, mas não o utilizou devidamente. 
    Para ser mais exato, a filosofia moderna passou mais tempo corrigindo seu instrumento musical, regulando-o, do que fazendo música. Ora, para que serve um instrumento musical do qual não sai uma música sequer? É claro que há muito que se aproveitar da filosofia moderna, mas não posso negar que esta tenha tomado um rumo um tanto contrário àquele que é próprio da filosofia; igualmente, não pretendo afirmar aqui que a filosofia moderna não seja filosofia - como alguns julgam que penso. Não. Na verdade, a insegurança dos filósofos modernos para com os sentidos, no caso dos racionalistas, e para com a razão, no caso dos empiristas, é perfeitamente justificada quando levamos em consideração a decadência da filosofia medieval que lhe precedeu, que havia excluído Deus da especulação filosófica, afirmando-o como objeto de fé e não de razão e como perfeitamente ininteligível.
    Tendo, inclusive, a pensar que aqui tenha se iniciado aquilo que Nietzsche chamaria posteriormente, em su'A Gaia Ciência, de "a morte de Deus", para sintetizar o niilismo que dominou a  Europa no século XIX. 
    Por conseguinte, parece-me que Hugo de São Vítor, mais do que um excelente direcionador e iniciador na arte da filosofia, é um bom antídoto contra as tendências contemporâneas de negar a natureza humana. Não raro, ouve-se algum infeliz, brandindo um livro de algum destes filodoxos ressentidos como se fosse uma poderosa lança, afirmando sem nenhum receio que o homem é um animal irracional; ou, pior, que é até mesmo inferior aos demais animais e que, por esta razão, deve rebaixar-se ao nível deles. Em outras palavras, eles tentam negar, custe o que custar, a participação do homem no divino, porque, ao admitir o homem como racional, admite-se, ipso facto, a sua participação na divindade. O homem, em verdade, foi feito à imagem e semelhança de Deus, e por isto carrega a racionalidade, a inteligência - que os outros animais não possuem - e é exatamente isto que a pós-modernidade quer fazer cair em descrédito. Todavia, Hugo já nos havia alertado quanto a este problema: pois - alerta-nos -quando o homem não compreende sua verdadeira natureza, ou seja, quando não compreende sua natureza racional, rebaixa-se ao nível das outras criaturas, sem que sequer se dê conta de que lhes é superior.
    Acreditar, portanto, que o homem é irracional é o corolário da animalização deste, quer dizer, é uma consequência direta do niilismo exacerbado que tende a ver um caos permanente no mundo que, por sua vez, à razão é inconcebível. A razão é, essencialmente, ordem; e, como defende Santo Tomás na Suma Contra Os Gentios, o próprio do sábio é ordenar. Ou seja, o próprio do sábio é servir-se da razão para pôr o conhecimento em ordem, pôr todas as coisas em ordem: tanto a vida quanto o conhecimento, em todos os âmbitos. E o niilismo, além de nos fazer regredir ao nível de cães, visa separar-nos de toda e qualquer ligação com o transcendente, que é precisamente aquilo que torna possível a união dos homens numa unidade.
    Mário Ferreira dos Santos, em Filosofias da Afirmação e da Negação, demonstra muito bem como a filosofia de nosso tempo é a filosofia da separação, da cisão, do caos, do conflito, e demonstra como a união dos homens só é possível na espiritualidade transcendental, visto que, materialmente, os homens não podem jamais vir a constituir uma unidade, mas deixemos isto para outro momento.
    Pois bem! Enquanto o niilismo e a modernidade concebem o homem como um dasein, como um ser lançado no mundo sem propósito algum, nós pensamos o homem como uma espécie de microcosmos, como tendo uma ligação direta e íntima com o universo, como sendo, de fato, o ente para quem Deus confiou o conhecimento d'Ele, ainda que de modo imperfeito em razão de uma limitação nossa; e não somenos importante, como sendo a sua mais perfeita criação. Nós temos um princípio divino, isto é, temos a Deus como causa elementar de nossa existência, e como sustentáculo não só desta, mas do cosmos por completo; e, a história o demonstra, sempre que nos esquecemos desta nossa origem divina, sucumbimos drasticamente, nos deixamos seduzir por nossas tendências mais vis, e temos nossa natureza vilipendiada pela animalidade, não digo pela humanidade porque esta consiste em ser racional.
    O que Hugo de São Vítor nos ensina é que somente a doutrina é capaz de restaurar a integridade de nossa natureza, que foi corrompida pelo pecado original, e que tem sido violada com mais ímpeto a cada dia pela modernidade; o que nos ensina é que devemos conhecer nossa própria natureza, e entender que não há razões para procurar fora o que já subsiste em nós, a saber: o próprio Verbo divino, a Sabedoria, o Logos eterno. Com efeito, a busca pela Sabedoria é, sem dúvida, a máxima consolação que podemos encontrar nesta vida; e, ao finalmente contemplá-la, gozamos temporalmente do sabor doce da eternidade. 
    Por fim, Hugo de São Vítor ensina-nos qual seja o princípio do aprendizado, a saber: a humildade. Em nossos tempos de egoísmo e orgulho exacerbados, pode soar ofensiva a afirmação de que a humildade constitui o princípio do aprendizado. No entanto, isto se constitui como fato, e não somente a história o demonstra, como nós mesmos temos plena consciência disto, queiramos ou  não admiti-lo. O início da atividade filosófica é uma verdadeira demonstração de humildade, visto que se inicia pelo thaumazein, ou seja, pelo espanto, que consiste precisamente no reconhecimento da própria ignorância ante o real, segundo nos ensina Aristóteles. Ora, não é o reconhecer-se ignorante um ato de humildade? Se não reconheço minha ignorância, tampouco posso suprimi-la. Platão advertia que o pior dos ignorantes é aquele que julga-se sábio, e por essa razão costuma-se sintetizar a filosofia socrática na célebre sentença "só sei que nada sei".
    Reconhecer-se ignorante é fundamental, e além disso é mister que não se despreze nenhuma ciência ou escritura, pois toda ciência - como afirma Hugo - é boa e nos pode ser útil. Em verdade, devemos nos dispor a aprender de quem quer que seja e de boa vontade, desde que ensine-nos a verdade; pois, com efeito, não raro um camponês é infinitamente mais sábio que um acadêmico de prestígio. Além do mais, as Escrituras nos orientam que, às vezes, o menor dos irmãos é o maior deles: precisamente quando a verdade está nele e fala por ele. Não considerar de quem vem, mas o que vem é fundamental, pois até mesmo o mais asqueroso dos homens pode dizer-nos algo de bom, assim como o melhor dos homens pode dizer-nos algo de mau. Além do mais, a humildade deve prevalecer mesmo após se ter alcançado o tesouro da ciência, porque a soberba não se justifica pela sapiência, ao contrário, justifica-se pela ignorância, pois quem é sábio sabe que pouco sabe, e quem é ignorante acha que sabe demasiadamente. Portanto, ao atingir este tesouro a que dedicamos toda nossa vida a procurar, não se envaideça, mas conserve a humildade primordial, recordando-se de que o próprio Deus fez-se homem, habitou entre nós e sofreu morte ignominiosa para livrar-nos do fogo do inferno: e este foi o maior ato de humildade da história. Sede, pois, como o Mestre: manso, humilde e solícito para fazer o bem. 
    

HUGO DE SÃO VÍTOR: Por que há tantos estudantes e poucos sábios?

     Após elaborar um quadro com as subdivisões da filosofia, a partir de suas quatro divisões primárias, a saber: teórica, prática, mecânica e lógica, Hugo de São Vítor revela-nos algo fundamental. Com efeito, revela-nos que os antigos perceberam que de todas as artes subordinadas à filosofia, apenas sete deveriam ser estudadas com afinco, e que o domínio destas sete artes facilitaria o aprendizado das demais. Para aprender as demais artes, ser-lhe-ia necessário tão-somente a prática sob a tutela de um mestre naquela arte, e isto seria muito mais proveitoso do que despender horas e mais horas na escuta de aulas acerca daquelas artes. Estabeleceu-se, então, que todo plano de estudos deveria ter como prioridade estas sete artes, que seriam posteriormente divididas no Trivium e no Quadrivium.

    Estas artes, de acordo com Hugo de São Vítor, "se constituem como os instrumentos e princípio mais excelentes pelos quais se prepara ao espírito a via para se alcançar o pleno conhecimento da verdade filosófica" (DIDASCALICON, p.127), ou seja, as sete artes - chamadas liberais - abrem o caminho pelo qual o espírito trilhará para chegar, finalmente, à Sabedoria - a que Hugo define como Logos divino, isto é, como a segunda pessoa da Santíssima Trindade, Jesus Cristo. Atente-se, pois, para o fato de que a Verdade não é uma coisa, mas alguém.

    Ainda de acordo com Hugo, na obra Didascalicon, não eram dignos de receber o nome de mestre aqueles que não tivessem plena ciência destas sete artes, a saber: gramática, lógica, retórica, que constituem o Trivium; aritmética, geometria, música e astronomia, que constituem o Quadrivium. Era, pois, mister que se soubesse estas ciências e seus princípios de cabo a rabo. E, aqui, conta-se uma história inusitada sobre Pitágoras - cuja veracidade não sou capaz de julgar; mas, se não é verdadeira, é, no mínimo, verossímil e, em todo caso, útil. Pitágoras havia estabelecido que nenhum de seus discípulos poderia sequer ousar perguntar as razões daquilo que ele lhes ensinava, pois deveriam dar sua confiança ao mestre. Eles só poderiam fazer perguntas após passados sete anos - em conformidade com o número das artes liberais; no entanto - note-se -, passados sete anos, os discípulos já seriam capazes de, por eles mesmos, empreenderem suas investigações a fim de sanar suas dúvidas.

    Conta-se também que "alguns estudavam estas sete artes com tanto empenho que as tinham todas bem claras na memória, de modo que, independentemente dos textos que tivessem em mãos ou das questões que lhes fossem propostas para serem resolvidas ou comprovadas, eles não precisavam buscar nos livros os princípios e regras para chegarem à conclusão do que estava em discussão; na verdade, a partir das sete artes liberais eles tinham já preparadas em seu íntimo as soluções para cada caso" (ibdem, p.127). Em verdade, creio que este trecho prescinda de explicação. Portanto, prossigamos.

    Hugo de São Vítor atribui a isto o fato de ter havido tantos sábios na antiguidade: por terem se dedicado com ardor ao conhecimento das sete artes liberais que, já foi dito, abrem o caminho pelo qual o espírito virá a trilhar a fim de de alcançar a verdade. Ademais, estes sábios antigos escreveram mais livros do que somos capazes de ler; deve haver, então, alguma razão especial para tal, e talvez seja precisamente a supracitada. Para nossa infelicidade, já no tempo de Hugo de São Vítor os alunos não conseguiam manter aquele nível de aprendizado que outrora era tão comum entre os estudantes. Assegura-nos, em sua obra, que "encontramos hoje muitos estudantes e poucos sábios" (p.129). E por que isto se dá? Porque, em primeiro lugar, os estudantes ou não querem saber como manter este nível de aprendizagem, ou simplesmente não o sabem. Nalguns casos, a situação ainda agrava-se mais: há quem despenda esforços hercúleos no aprendizado de coisas inúteis - e este está em situação adversa. Como afirma o próprio Hugo, "é ruim ser negligente com uma coisa boa, mas é pior despender muitos esforços em uma coisa vã" (p.129).    

    No mais das vezes, nós, jovens, caminhamos por trilhas as quais desconhecemos, e, além de não os conhecer, são-nos demasiados escuros. Estamos, não raro, como que perdidos numa floresta imensa na qual nunca antes havíamos pisado; como quem acordou e não tem a menor ideia de onde está. O mundo parece-nos cada vez mais caótico, e a trilha que nos conduz à verdade parece-nos cada vez mais confusa. Há tantos livros, tantos cursos, tanto material disponível, tantas informações que não sabemos por onde começar, nem como começar. Como se já não bastasse esta confusão primeira, há ainda a confusão acerca da finalidade para a qual estudamos: para que nos dedicaremos por toda a nossa vida aos livros? Ora, deve haver alguma finalidade nobre, e esta é - muito embora queiram-nos confundir quanto a isto - a verdade. O objeto da ciência verdadeira é a verdade, e tudo que ultrapassa isso é de procedência maligna, para utilizar uma expressão bíblica.

    A filosofia não visa o prestígio social, não visa nos conferir um bom emprego, etc., mas ensinar-nos a viver plenamente: a tornarmo-nos pessoas de verdade. A filosofia é, antes de tudo, um modo de vida - como muito bem aponta Julian Marías na introdução de sua História da Filosofia. A filosofia é, com efeito, um conhecimento que se realiza na vida, e uma filosofia que não pode ser vivida não é uma filosofia - ou é, no máximo, uma aparência de filosofia. Em verdade, uma filosofia impossível de ser vivida é como a sofística: uma sabedoria aparente, mas não real, porque a sabedoria se realiza na vida. 

    Por conseguinte, o que quero apontar, com isto tudo, é o seguinte: busquem um orientador espiritual - e aqui não utilizo o termo em sentido religioso, mas é válido também para este - e siga os conselhos que ele lhes der. Por quê? Porque ele, mais do que você, conhece os caminhos que conduzem à verdade; se não os conhece plenamente, ao menos os conhece melhor do que você. Enquanto, para você, este caminho é constituído de trevas infindáveis, de névoas impenetráveis, para ele é tudo muito nítido, como quem saiu da caverna há tempos e já acostumou-se com a luz do sol. Ninguém, por mais longe que tenha chegado a sua visão, pode vislumbrar a verdade por completa, mas uns já a enxergaram mais do que outros, e o papel do mestre é precisamente lhe mostrar o caminho. Quando lhe for revelado o caminho a que você deve seguir, siga-o. Ninguém pode trilhá-lo por você, mas você precisa de alguém para lhe mostrar tal caminho. 

    Como escolher este orientador? Bem, os sábios e os santos estão à nossa disposição, e podemos nos dedicar ao estudo de sua obra. Caso, porém, você conheça alguém em quem possa confiar, confie nesta pessoa. Não é possível dar orientações precisas sobre quem escolher, mas há um único critério ao qual devemos firmemente nos ater, que para mim é suficiente: consiste em saber se o objetivo máximo desta pessoa a que pretendemos nos submeter é a verdade. Se ele ama a verdade e daria sua vida por ela; se ele vive em conformidade com aquilo que a verdade lhe diz, então é confiável. De acordo com Sertillanges, "a verdade só serve a seus escravos" e "só se doa a quem se entrega a ela por inteiro". Com efeito, um pensador é um filho da ideia, um filho da verdade, e não de si mesmo, e deve submeter-se sempre àquilo que a verdade dita, porque, como afirma Santo Tomás de Aquino, a verdade é a adequação do intelecto à realidade. 

    Ademais, saber a direção a que devemos seguir previne-nos de frustrações terríveis, de perdas irreparáveis de tempo, e nos conduz à verdade com mais rapidez e, de certo modo, mais segurança. Por que perder tempo lendo livros ruins, quando podemos ler, de início, livros geniais? Por que ler, por exemplo, a História da Filosofia Ocidental do Bertrand Russel - eu infelizmente li esta porcaria - quando podemos ler a História da Filosofia do Giovanni Reale, ou a História da Filosofia do Julian Marías, ou a do Copleston? Por que ser "convidado à filosofia" pela doutora que dirige seu ódio à sua própria classe - sim, dona Marilena Chauí - quando podemos ler o Convite à Filosofia do Enrico Berti, ou a Introdução à Filosofia do Julian Marías, ou o Curso de Filosofia do Régis Jolivet? Pois bem, é para não ter de passar por estas desgraças e ser direcionado imediatamente para os bons livros e manuais que nos submetemos a um orientador - seja ele presente, vivo, ou morto, mas imortalizado por sua obra.