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13 de setembro de 2020

ORTEGA Y GASSET: As Idéias dos Náufragos

    Observai os que vos rodeiam e vereis como avançam perdidos em sua vida; vão como sonâmbulos, dentro de sua boa ou má sorte, sem ter a mais leve suspeita do que lhes acontece. Ouvi-los-eis falar em fórmulas taxativas sobre si mesmos e sobre seu contorno, o que indicaria que possuem ideias sobre tudo isso. Porém, se analisais superficialmente essas ideias, notareis que não refletem muito nem pouco a realidade a que parecem referir-se, e se aprofundais na análise achareis que nem sequer pretendem ajustar-se a tal realidade. Pelo contrário: o indivíduo trata com elas de interceptar sua própria visão do real, de sua vida mesma. Porque a vida é inteiramente um caos onde a criatura está perdida. O homem o suspeita; mas aterra-o encontrar-se cara a cara com essa terrível realidade, e procura ocultá-la com um véu fantasmagórico onde tudo está muito claro. Não lhe interessa que suas "ideias" não sejam verdadeiras; emprega-as como trincheiras para defender-se de sua vida, como espantalhos para afugentar a realidade.

    Homem de mente lúcida é aquele que se liberta dessas "ideias" fantasmagóricas e olha de frente a vida, e se convence de que tudo nela é problemático, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade - a saber, que viver é sentir-se perdido -, quem o aceita já começou a encontrar-se, já começou a descobrir sua autêntica realidade, já está no firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo para se agarrar, e esse olhar trágico, peremptório, absolutamente veraz porque se trata de salvar-se, lhe facultará pôr ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas ideias verdadeiras; as ideias dos náufragos. O resto é retórica, postura, íntima farsa. Quem não se sente de verdade perdido perde-se inexoravelmente; quer dizer, não se encontra jamais, não topa nunca com a própria realidade.


Referência: José Ortega y Gasset. A Rebelião das Massas.